quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Um tal Silva

Há uma fábula corrente entre os fanáticos por Fórmula 1, na qual alguns abençoados conseguem ter acesso a Mim e, em vez de perguntarem sobre os mistérios da humanidade, questionam-Me sobre quem seria o melhor piloto de todos os tempos. Ainda de acordo com a lenda, eu mostro a eles um sujeito normal, que vive pacatamente como contador, ou algo do gênero, num canto qualquer deste mundo. Perplexos, os fãs não entendem. “Bom, Eu o projetei, física e mentalmente, para que fosse o maior de todos; não tenho culpa se ele nunca chegou perto de um carro veloz”, explico, encerrando a historinha. Devo dizer que foi o mais perto que vocês chegaram de Me entender desde... bem, sejamos sinceros, vocês nunca Me entenderam direito.

Houve alguns outros homens que também foram desenhados para esse ofício e, felizmente, chegaram perto o bastante de um bólido para se apaixonarem pelo cheiro de gasolina. Poucos, porém, justificaram o projeto de biomecânica divina e assombram o mundo demonstrando a capacidade que, modéstia à parte, fui Eu quem lhes deu. Há vinte anos, no dia 20 de outubro de 1988, acontecia um desses episódios, no Japão. Não foi com nenhum japonês, não; quero dizer, eles são bons engenheiros de motor e de carros de passeio, mas nunca saiu daqui de cima o projeto de um bom piloto de olhos puxados. Foi um brasileiro, um tal de Silva. Ayrton Senna da Silva.

No campeonato daquele ano, o Silva disputava o título com um francês que corria com o mesmo carro e, devo admitir, tinha saído da Minha prancheta mais bem equipado: era mais calmo, preciso e cerebral. Alain era o nome dele. Não lembro o nome completo, desculpem; geralmente guardo só os verdadeiramente especiais. Enfim, ambos eram bons e o carro era fantástico, tanto que ganhou 15 das 16 corridas do ano. Parecia até feito por Mim; na verdade, meu lápis só gerou os japoneses que desenharam o motor. O fato é que o francês estava indo melhor: até ali, tinha abandonado apenas duas provas, vencido seis e chegado em segundo em outra meia dúzia. O Silva, mais arrojado e dado a erros, tinha vencido sete e mais apenas dois segundos lugares, além de outros resultados ruins.

Acontece que nunca saiu daqui de cima um projeto de criador de regulamentos esportivos. Assim, por algum motivo, contavam para o campeonato apenas os onze melhores resultados da temporada. Não fosse por isso, o Silva já não teria mais chances ao chegar em Suzuka. Bastava a ele chegar na frente do Alain. Injusto, claro. Cabia a Mim, portanto, fazer a justiça de... bem, a Minha justiça. Não pude interceder nos treinos; ele era bom demais nas tomadas de tempo, fazendo treze poles só naquele ano. Então, misteriosamente, na largada, o motor dele não pegou. Era um teste, na verdade: queria ver se o Silva desistia. Não desistiu. A largada do GP do Japão era numa descida e o cara teve a presença de espírito (santo?) de fazer o carro pegar na banguela.

Até pegar, no entanto, vários carros e pilotos menos bem-projetados o ultrapassaram. O francês, que largou em segundo, disparou na frente. O brasileiro foi parar em décimo quarto. O carro, porém, era muito bom. O Silva também, mas não sou de ficar Me gabando. Ao completar a segunda volta, ele já estava em oitavo. Nas duas voltas seguintes passou mais quatro caras. O esforço era tão grande que comecei a ficar compadecido pelo sujeito. Então, misteriosamente, começou a chover na 14ª volta. O Alain era perfeito, mas só em condições perfeitas. Não, não foi um erro de projeto! A única falha que admito ter cometido com ele foi o nariz, que o prejudicava um pouco para colocar o capacete, mas nada grave.

O Silva começou a girar cinco segundos mais rápido por volta que o nari..., digo, o francês e logo o alcançou. Isso foi na volta 27, com 16 faltando para o final. Eles chegaram em alguns retardatários e o brasileiro forçou a passagem. E passou. Assim, sem mais nem menos, como se nada tivesse acontecido nas 26 voltas anteriores. Em seguida, começou a debochar, abrindo mais de três segundos por volta. Não gostei dessa atitude e, misteriosamente, faltando poucas voltas, apareceu um japonês retardatário na frente dele. Lembrem-se que Eu disse que não existiam bons pilotos japoneses, e não que não existia nenhum piloto japonês. O Nakajima, esse era nome dele, não sei porque me lembro, empolgado por estar correndo em casa, resolveu segurar o Silva. O Alain chegou perto, mas não teve tempo de fazer nada. Não havia mais o que fazer, afinal. Alguns minutos depois, o Silva abriu a última volta. Achei que seria de bom grado, depois de tudo que Eu fiz, dar uma descidinha e parabenizá-lo, campeão mundial de Fórmula 1 pela primeira vez. Nos anos seguintes, ele sempre dizia que tinha Me visto ao cruzar a linha de chegada. Viu mesmo, o Silva. O grande Ayrton Senna da Silva.

Bruno Volpato

2 comentários:

César Soto disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
César Soto disse...

pela lógica, volpato é cego?... O_o